Autora de referência das edições ASA e uma das mais importantes autoras portuguesas de literatura infanto-juvenil, Maria Alberta Menéres vai receber a Ordem de Mérito Civil, no grau de Comendador, na Sessão Solene comemorativa do 10 de Junho, a realizar em Faro.
A sua mais recente obra é «Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa», uma biografia sobre o poeta.
In Diário Digital
Edições ASA - INFORMAÇÃO À COMUNICAÇÃO SOCIAL / 7 JUN 2010
ESCRITORA MARIA ALBERTA MENÉRES VAI SER CONDECORADA PELO PRESIDENTE DA REPÚBLICA
Quinta-Feira, 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.
A escritora Maria Alberta Menéres vai ser condecorada na próxima quinta-feira pelo Presidente da República. Autora de referência das edições ASA e uma das mais importantes autoras portuguesas de literatura infanto-juvenil, Maria Alberta Menéres vai receber a Ordem de Mérito Civil, no grau de Comendador, na Sessão Solene comemorativa do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, a realizar em Faro. A distinção ocorre no ano em que a escritora completa 80 anos e numa altura em que acaba de lançar “Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa”, uma biografia sobre o poeta que justamente se celebra a 10 de Junho. A ASA tem vindo a comemorar, em 2010, o “Ano Maria Alberta Menéres”, com um vasto conjunto de iniciativas entre as quais o lançamento da já referida obra sobre Luís de Camões.
Maria Alberta Menéres nasceu em 1930, em Vila Nova de Gaia. Tem uma vasta obra poética, estando representada em várias antologias literárias nacionais e estrangeiras. É autora de inúmeros programas televisivos para crianças, tendo dirigido, entre 1974 e 1986, o Departamento de Programas Infantis e Juvenis da RTP. Publicou mais de 60 livros para crianças, entre contos, poesia, Banda Desenhada, teatro e novela. Maria Alberta Menéres é sobretudo (re)conhecida como autora de livros infantis e juvenis, tendo sido distinguida, em 1986, com o Grande Prémio Calouste Gulbenkian de Literatura para Crianças “pelo conjunto da sua obra literária e pela manutenção de um alto nível de qualidade”. A “Biblioteca Maria Alberta Menéres”, que a ASA vem publicando há mais de 20 anos, reúne justamente uma parte substancial da ficção da autora dirigida às crianças, com merecido destaque para o “bestseller” Ulisses, que conta já com 36 edições e mais de 650 mil exemplares vendidos. Entre as múltiplas actividades que encontramos no seu currículo, Maria Alberta Menéres foi, também, durante seis anos, autora das letras das canções da campanha «Pirilampo Mágico»,( foi ela que inventou o nome de "Pirilampo mágico" ) em cooperação com a Antena 1 !!
A condecoração a Maria Alberta Menéres que será atribuída pelo Presidente da República na Sessão Solene comemorativa do 10 de Junho, Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, em Faro:
Ordens Nacionais:
Ordem do Infante D. Henrique
•Maria Alberta Menéres (Comendador)
Entrevista a Maria Alberta Meneres
Por Catarina Pires.
Com os seus quase 80 anos, que serviram de pretexto para a Leya fazer de 2010 o ano Maria Alberta Menéres, a escritora de gargalhada sempre pronta e um brilho traquinas no olhar conversa a meias com a filha, Eugénia Melo e Castro, sobre o seu último livro – Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa –, sobre literatura e principalmente sobre a melhor infância do mundo, a sua, passada entre Vila Nova de Gaia e o Ribatejo. Lá, na infância, teve o maior prazer em ser má, péssima, terrível. E passa a vida a voltar lá para escrever as dezenas de livros que publicou para crianças. Começou pela poesia, foi professora de Português, dirigiu o departamento de programação infantil da RTP entre 1974 e 1986, foi responsável pela linha «Recados das Crianças» da Provedoria da Justiça, na época de Menéres Pimentel, seu primo. Nunca parou, de norte a sul do país, visitando escolas e desenvolvendo projectos com os miúdos. Está sempre a inventar, mas é à noite, madrugada dentro, que é como que possuída pela escrita e dá forma às suas histórias num processo de tal forma natural que já lhe aconteceu esquecer-se de que tinha escrito um livro inteiro. Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa, por exemplo, esteve um ano esquecido na gaveta mágica da escritora. Até que saiu.
Como é que recebeu a notícia de que a Leya ia fazer de 2010 o ano Maria Alberta Menéres?
Maria Alberta Menéres (M.A.M.) – Nem queria acreditar. Não tenho jeito nenhum para estas coisas. O que vale é que a Geninha me ajuda, vai comigo para todo o lado, porque eu já não posso guiar. E guia tão bem, tão bem!
Eugénia Melo e Castro (E.M.C.) – Agora sou motorista, parei tudo, fiz um intervalo na minha carreira, para vir dar este apoio à minha mãe. Achei que era importante estar aqui porque a minha irmã trabalha de manhã à noite e não tem possibilidade nenhuma de a acompanhar. Como sou aquela que aparentemente não faz nada, porque é artista, achei que estava na hora de vir. A minha mãe já não pode guiar, até porque andava a 180 e passava quarenta vermelhos.
M.A.M. – [Ri] Eu e o carro sempre fomos uma pessoa só. Era eu de rodinhas, adorava guiar, tão depressa estava no Algarve como em Trás-os-Montes.
Porque é que escolheu Luís de Camões como o super-herói da língua portuguesa?
M.A.M. – Porque gosto muito dele. A sua poesia encanta-me. E é importantíssimo para todos nós, portugueses. Além disso, era um aventureiro. Teve uma vida que não foi feliz, mas foi muitíssimo cheia e complicada. Sofreu muito e apesar do grande poeta que foi morreu na miséria, chegou a não se saber onde estava enterrado.
Diz-se que Camões tinha muito mau génio e a Maria Alberta quando era pequena também era muito mazinha, segundo ouvi dizer. De alguma forma identificou-se com o mau génio dele?
M.A.M. – Não, coitadinho, ele não tinha mau génio. Irreverência talvez, e ousadia também. Naquele tempo perseguiam-no muito ? as pessoas perseguiam-se umas às outras, não é? ? porque era tão bom que era perigoso e havia muita inveja em relação a ele.
E.M.C. – Mas a pergunta era se a mãe se identificava com ele. Ele era irreverente, irrequieto, desobediente, curioso, estudioso, tudo coisas que a mãe é!
M.A.M. – [Ri] Pois, ele era muito engraçado. Uma vez, quando estava em Goa, quis dar um jantar, mas como não tinha dinheiro, fez poemas para cada um dos convidados, em substituição do prato de comida. Tinha estas coisas. Chamei-lhe super-herói da língua portuguesa porque ele era realmente extraordinário, metia-se em aventuras, fazia coisas que eram verdadeiras proezas.
Há outros super-heróis, ou só heróis, da língua portuguesa?
M.A.M. – Não estou a ver, assim deste género, verdadeiramente herói de capa e espada, não há outro. Camões foi o que mais sofreu e o que mais energia tinha, uma energia poética.
E.M.C. – É o mais emblemático e é aquele com quem os miúdos mais podem identificar-se, porque essa irreverência os aproxima dele. Assim ficam a saber que o senhor que escreveu Os Lusíadas, que é um livro muito difícil, não é um chato. Se Camões vivesse hoje seria alguém com quem os miúdos iriam identificar-se, pela sua irreverência, pela sua genialidade, pelas suas ideias avançadas, pela sua vida aventurosa.
Diz que o poeta se faz aos 10 anos. Camões terá começado um pouco mais tarde. E a Maria Alberta começou quando e porquê?
M.A.M. – Com 9 anos comecei a escrever as primeiras poesias, uns horrores, claro [ri]!
E.M.C. – Não eram nada uns horrores.
M.A.M. – Estava no campo, sabe, vivia no Ribatejo e olhava para as coisas e tirava uma ideia daqui, uma ideia dali, de uma árvore, de uma flor, de um bicho, tudo me fazia escrever.
E.M.C. – Mas isso a mãe manteve toda a vida. Todos os livros da minha mãe partem de coisas que imaginava, que vivia. O Ouriço-Cacheiro Espreitou Três Vezes vem de um ouriço que ela conheceu.
M.A.M. – E o Pirilampo Mágico também fui eu que inventei. Estava no Alentejo e ligaram-me a dizer que precisavam de um bichinho que fosse fácil e barato de reproduzir para uma campanha de solidariedade. E eu estava debaixo de um chorão cheio de luzinhas, que eram pirilampos, e digo: um pirilampo, e do lado de lá do telefone diz o José Manuel: mágico. E ficou pirilampo mágico. E depois durante anos fui que fiz as letras para as canções da campanha.
O que é que a motivou para a escrita?
M.A.M. – Eu gostava muito de ler e em Vila Nova de Gaia, onde nasci e vivi até aos 7 anos, não fui à escola, iam umas professoras lá a casa, mas eu estava sempre a fugir por baixo das cadeiras. De maneira que foi o avô Menéres que me ensinou a escrever. E eu gostava muito de aprender palavras difíceis.
E.M.C. – O avô adorava-a. Era a única neta diferente, a que dava respostas, a que tinha graça.
M.A.M. – Mas também era a única que apanhava um carvão no Natal. Éramos 14 netos e eu recebia sempre um carvão grande porque de todos era a que me tinha portado pior. O tamanho do carvão era determinado pela maldade e como eu era muito má o carvão ia sendo cada vez maior [ri]. E eu ficava danada e dizia assim: que injustiça, o menino Jesus não sabe, não vê bem. Era um sofrimento todos os natais, pensava: estará lá o carvão? E estava, cada vez maior. Mas eu era uma coisa incrível, era diabólica. Um dia ia a correr, a correr, e vinha uma criada com um grande alguidar de água a ferver e eu agarrei-me a ela e a água toda a escaldar passou-me por cima, sem me acertar.
Tinha, portanto, um pacto com o diabo?
M.A.M. – Era muito má, queria era meter sustos a toda a gente. E como era muito mexida, chegava a ser perigosa, abria as portas às galinhas para que saíssem e fizessem a bulha toda que quisessem no quintal, umas coisas horrorosas, palavra de honra.
E.M.C. – Mas era a preferida do avô, que ele levava sempre para a câmara [o avô era presidente da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia].
Esse avô era o que guardava os seus poemas com a classificação de avô satisfeito e avô continua satisfeito?
M.A.M. – Era, era. Ainda tenho um livrinho encadernado por ele com os meus versos, que eu lhe ia dando e que ele guardava com muito cuidado. Era muito querido, o meu avô.
Gostava de aprender palavras difíceis. Por isso é que andava com o dicionário debaixo do braço?
M.A.M. – Era o meu livro preferido. Eu achava que se soubesse aquilo tudo podia escrever, podia ser escritora. Não era por ser estudiosa, era porque queria conhecer as palavras todas.
Essa preocupação com as palavras levou-a na sua escrita a preocupar-se mais com a forma do que com o conteúdo?
M.A.M. – Às vezes o enredo é o menos importante, escrevo o meu melhor quando escrevo para as crianças, mas sinceramente é o que me vem à cabeça, as coisas aparecem-me, não ando à procura.
Com 7 anos foi viver para o Ribatejo, perto do Couço, e mais tarde entrou para o colégio interno. Nessa altura, as suas partidas tornaram-se lendárias. É verdade que comeu uma barata?
M.A.M. – É, é. Ai que horror [ri]. Estava eu a tomar o pequeno-almoço num dia em que foi lá ao colégio o arcebispo de Mitilene, que era muito importante, e de repente cai uma baratinha no meu prato. Tudo aos gritos «Ai uma barata, ai uma barata» e eu «Ai, tão boa» e engoli a barata inteira. Lembro-me tão bem. Não senti nada, só adorei ver a cara aflita daquela gente toda. Fiquei tão contente que nem senti a barata. E depois houve uma altura em que inventei que voava, sabe?
Não. Inventou que voava?
M.A.M. – Pois. Eu era muito boa em ginástica, era óptima, corria que me fartava, ninguém me apanhava, e então dizia que voava, mas só às quintas-feiras, às cinco da tarde. E às quintas-feiras, às cinco, desaparecia sempre. Só que houve um dia em que não me lembrei de me esconder e toda a gente nas Doroteias começou a gritar: «Alberta voa», «Alberta voa», centenas. Não podia fugir, por isso subi ao espaldar e de lá de cima voei. Cá em baixo tudo aos gritos: ela voou, ela voou. Quando aterrei, tinha partido um pé! Imagine o que foi que, quando estava para casar com o pai da Eugénia, ele ia no comboio para a Covilhã, encontrou umas amigas e disse-lhes que ia casar e elas: com quem? E ele: com a Maria Alberta. E elas: a Alberta que voa? [Ri]
E os seus pais como é que reagiam a essas traquinices todas? Tem dito que o seu pai era muito autoritário. Era assim ou no fundo achava graça às suas partidas?
M.A.M. – Era autoritário, mas era muito querido. O meu pai era muito parecido comigo, também tinha sido muito mau. Era muito aventureiro. Não queria estudar e perdeu o ano e um dia meteu-se num navio para África e foi parar muito longe, muito longe e ninguém sabia dele em Vila Nova de Gaia. Eu tentei saber o que é que tinha acontecido, para escrever, mas ele nunca me contou. Depois lá descobriram quem ele era e mandaram-no para cá e o meu avô foi lá buscá-lo. Mas era muito engraçado, o meu pai.
E.M.C. – Houve sempre um grande fascínio de parte a parte. O meu avô Alberto teve três filhas e esteve sempre à espera do rapaz, que não veio. Mas a minha mãe era especial, foi a única que estudou, a única que foi para a faculdade, a única que quis trabalhar, fez uma vida fora dos cânones da família. Não há dúvida de que era uma pessoa diferente, desde sempre, desde miúda.
E as suas irmãs como é que reagiam à sua malvadez?
M.A.M. – Não ligavam muito, eram muito sossegadinhas e eu era péssima, por isso fugiam.
E.M.C. – Uma das maldades que ela fazia era não deixar ninguém dormir. Elas dormiam todas no mesmo quarto e a minha mãe dizia que não dormia enquanto os santinhos todos não rissem para ela.
M.A.M. – [Ri] Havia uma prateleira cheia de santos e eu embirrava que só dormia quando todos se rissem para mim e as minhas irmãs suplicavam: deita-te, por favor. Zangavam-se imenso, mas só quando eu sentia os meus pais chegarem à noite do seu passeio é que me deitava a dormir. Um dia não aguentaram mais e eu passei para o quarto ao lado. Tive de ser transferida.
E.M.C. – Ela era a mais velha e as pobres coitadas das minhas tias andaram a vida inteira a reboque das maluquices dela.
Em A Chave Verde ou os Meus Irmãos fala da experiência de ser filha única. Alguma vez se sentiu como tal, apesar de ter duas irmãs?
M.A.M. – Não, não, eu era muito independente e muito atrevida, mas não me sentia nada filha única, só queria era que me deixassem fazer o que eu queria, que era pregar partidas e sustos. O que eu adorava era ver todos aflitos. Perdia-me de propósito para toda a gente ir atrás de mim. Escondia-me. E quanto mais perguntavam, mais eu me escondia. E ria! Mas depois quando via as pessoas aflitas lá aparecia. Mas onde eu estivesse havia bulha.
E.M.C. – Sentia-se filha única, claro. Sempre sentiu.
E quando é que se corrigiu?
E.M.C. – Nunca.
M.A.M. – Pois, mas já não faço essas coisas.
E.M.C. – O que é que a mãe não faz?
M.A.M. – Mau! Não prego partidas!
E.M.C. – Até há pouco tempo fugia de casa. Nós já não a deixávamos sair sozinha de carro e ela saía. Dizia que ia só ali e de repente telefonava de Trás-os-Montes, a dizer que tinha chegado bem, que estava tudo bem, e no dia seguinte ia para Viseu e depois para o Algarve e foram anos e anos nisto. De carro, sozinha, sem GPS, sem telemóvel, o médico proibia, toda a gente proibia, porque era perigoso, mas lá ia ela.
M.A.M. – Isso é verdade.
E.M.C. – Completamente indomável. Nunca entrou numa cozinha, não sabe cozinhar. Era a mãe mais divertida, mais amiga, mais camarada, mais compreensiva, mas era a pior dona de casa que existia, nunca na vida teve o menor jeito para o serviço da casa. Nem para dar ordens às empregadas. Era a negação absoluta para as coisas do dia-a-dia. O mundo dela é outro mundo, as realidades dela são outras. Vive para as histórias que vê e vive e inventa, mas que para ela são absolutamente verdade. Ela é a imaginação absoluta.
Não se imagina a fazer outra coisa senão escrever?
M.A.M. – Não, escrever é o que eu gosto de fazer.
É mais fácil para si falar com as crianças do que com os adultos?
M.A.M. – Sim, sempre foi. Gosto muito de falar com as crianças e é sempre uma risota porque sou como elas. Pensava no que lhes ia fazer sentir medo, no que lhes ia causar surpresa, no que ia ser uma emoção. Foi assim que aconteceu o Ulisses.
E.M.C. – Há uma identificação muito grande. Ela nunca cresceu, nunca pertenceu ao mundo dos adultos, e por isso havia uma comunicação muito grande.
O Ulisses é um dos seus best-sellers. Conte então como aconteceu?
M.A.M. – Na Pedro Santarém, uma das últimas escolas onde estive como professora, a certa altura tinha de fazer aulas de substituição de cada vez que uma professora faltava. E então, como não eram meus alunos e não os conhecia, comecei a contar o Ulisses e isto durou o ano inteiro. Às tantas todos queriam ouvir a história e acabei numa sala polivalente enorme a contar o fim. Escrevi-o em cinco dias e foi escrito tal e qual como foi contado. Tem uma grande oralidade, mas resulta muito bem porque as crianças quando o lêem é como se estivessem a ouvir a história. Mas tudo começou de uma tentativa de captar a atenção dos miúdos e fazê-los interessarem-se pelo que estava a contar.
Não há maus nas suas histórias. Porquê?
M.A.M. – Não sei, nem me lembrava dos maus, sempre escrevi o que me vinha à cabeça e por alguma razão os maus não estavam lá.
E.M.C. – A minha mãe gosta do mistério, das coisas assombrosas, do bichinho que vai e vem, o que vai fazer, o que vai conversar com a minhoca quando a encontra pelo caminho. É uma imaginação fabulosa, que de tudo faz uma história.
No seu livro O Poeta Faz-Se aos Dez Anos, achei geniais os exercícios que fazia com eles para lhes desatar a imaginação. É muito difícil? Como é que se desata?
M.A.M. – Começava-se. Eles diziam que não sabiam o que escrever e eu respondia: «Olha ali uma mosca, o que é que ela estará a pensar?» «Então, posso escrever sobre a mosca?», perguntavam. «Claro que podes!», respondia eu. Podiam tudo e era nessa liberdade que se desenvolvia a imaginação. Eu queria era que eles escrevessem, que gostassem de escrever.
E.M.C. – Havia uma empatia muito grande e depois como ela é muito mandona e muito determinada e muito obcecada, aquilo era para ela uma missão e quanto piores eram as turmas e mais difíceis e mais rufias eram os miúdos, maior era o desafio de os pôr a escrever poesia.
M.A.M. – Ai, mas eu adorava e tive alunos espectaculares. Viviam em bairros problemáticos, mas eram tão queridos. Apanhei-os com 12 ou 13 anos, que são as idades mais difíceis, mas era professora de Português e isso dava-me mais liberdade para trabalhar do que se fosse de Ciências ou de Matemática. Contava-lhes histórias para eles não andarem à bulha.
Porque é que a certa altura deixou a poesia para adultos para trás e começou a escrever para crianças?
M.A.M. – Nunca deixei a poesia para trás, poesia escrevi sempre. Não ficou para trás, ficou ao lado.
E.M.C. – E vai ser lançada agora, toda a poesia de adultos.
M.A.M. – Mas essa poesia fazia-a para mim e não era muito alegre, era diferente do que o que eu escrevia para eles, que tinha de me fazer rir. A literatura infantil tem que ver com o meu lado mais alegre. Comecei a escrever mais para eles porque me divertia imenso. Por exemplo, para este Camões, o Super-Herói da Língua Portuguesa, não inventei nada, é tudo verdade, mas diverti-me muito a escrevê-lo e a descobrir as coisas todas que descobri para o escrever. Está a ver esta aqui [aponta para uma das ilustrações do livro, de Fernanda Fragateiro e José Fragateiro]? Esta sou eu e digo assim: «A vida é muito fácil, é composta por princípio meio e fim, o princípio é nascer, o meio é a continuação e o fim é a morte. Eu agora estou na continuação.» É uma redacção que fiz aos 9 anos e que pus aqui para dizer que Camões ficou sempre na continuação, porque a sua poesia livrou-o da morte.
E ainda acha, quase a fazer 80 anos, que a vida é muito fácil?
M.A.M. – Acho.
Continua na continuação. Não tem medo do fim?
M.A.M. – Medo de pensar, tenho, mas afasto logo o pensamento. Toda a gente morre. Às vezes, tenho é curiosidade, mas não avanço muito no sentido de a satisfazer.
E.M.C. – Há uma coisa que lhe perguntou que eu quero responder. Porquê o entusiasmo com a poesia infantil e a retracção com a poesia para adultos? A minha mãe tem um lado de timidez e incapacidade social enorme. Não frequenta os meios, gosta de ficar no seu cantinho, no seu Alentejo, na sua casinha, com os seus livros, com as suas coisas, com os bichinhos, com a família, e detesta cerimónias. É avessa a qualquer coisa mundana e isso aproximou-a muito mais das crianças porque com as crianças não há cerimónias. A infância dela foi tão boa que resolveu prolongá-la em função dessa timidez brutal e dessa incapacidade que tem de lidar com coisas reais. O lado infantil e da imaginação foi sempre muito mais forte e manteve-se até hoje de uma forma absolutamente extraordinária.
M.A.M. – Tive uma infância muito feliz e nunca acabou, sabe? Eu lembro-me de nascer. Palavra de honra! Fui a primeira filha, nasci em casa e quando nasci pegaram em mim e puseram-me num sofazinho dourado. Acho que me mexi tanto ? Agora lembro-me, fiz tanta bulha ali acabada de nascer, que a minha mãe disse: «Ai, a menina.» E eu já ia a cair quando o meu pai deu um pulo e apanhou-me assim no ar. É verdade, ainda me lembro da sensação de cair e de ser apanhada pelo meu pai. Não acreditam, mas é verdade.
E.M.C. – Imagina o que é viver com isto desde que nasci? Sabe qual é a grande vantagem? É que estamos sempre a rir!
.........visto que é um FEITO "daqueles" em Portugal, o Ulisses de Maria Alberta Menéres acaba de completar os 700.000 exemplares vendidos !!!!!
Infantil:
Conversas com Versos (poesia). Lisboa: Afrodite, 1968.
Figuras Figuronas (poesia). Lisboa: Portugália, 1969.
O Poeta faz-se aos Dez Anos. Lisboa: Assírio & Alvim, 1974.
Ulisses. Lisboa: Cabra Cega, 1972.
A Pedra Azul da Imaginação (poesia). Lisboa: Plátano 1975.
Um + Um = Dois Amigos. Lisboa: Plátano 1976.
Lengalenga do Vento. Lisboa: Plátano Editora, 1976.
A Chave Verde ou os meus Irmãos. S.l.: Eixo, 1977.
Hoje Há Palhaços (com António Torrado). Lisboa: Plátano, 1977.
E Pronto ! Lisboa: Plátano, 1977.
Primeira Aventura no País do João. (B.D. de Pedro Massano), 1977.
Semana Sim, Semana Sim. Lisboa: Plátano, 1979.
Um Peixe no Ar (poesia). Lisboa: Plátano, 1980.
O Ouriço-Cacheiro Espreitou Três Vezes. Porto: Asa, 1981.
O que é que Aconteceu na Terra dos Procópios? Lisboa: Moraes Editores, 1980.
A Água que Bebemos (B.D. de Artur Correia). Lisboa: Caminho, 1981.
O Livro das Sete Cores (poesia, com António Torrado). Lisboa: Moraes Editores, 1983.
O Tritão Centenário. Lisboa: Dom Quixote, 1984.
Esta Palavra Concelho (B.D. de Artur Correia). Lisboa: Sismet, 1984.
Histórias em Ponto de Contar (com António Torrado, sobre desenhos de Amadeo de Souza-Cardoso) Lisboa: Comunicação, 1984 . nova edição 2010 Assirio e Alvin.
Dez Dedos Dez Segredos. Lisboa: Ed. Latina, 1985; Porto: Asa.
Aventuras da Engrácia. Porto: Asa, 1985.
O Sétimo Descarrilamento (com Carlos Correia). Lisboa: O Jornal, 1985.
O Retrato em Escadinha. Lisboa: Livros Horizonte, 1985.
Este Concelho de Oeiras (B.D. de Artur Correia). Lisboa: Sismet, 1985.
Corre, Corre, Pintainho. Lisboa: Plátano, 1988.
À Beira do Lago dos Encantos (teatro) Lisboa: Rolim, 1988.
Um Camaleão na Gaveta. Lisboa: Plátano, 1988.
Uma História em Quadradinhos (com António Torrado). Porto: Asa, 1988.
Histórias de Tempo Vai, Tempo Vem. Lisboa: Desabrochar, 1988.
Histórias e Canções em Quatro Estações (coord. e colab. - 4 vols. Livro/k7). Lisboa: Lisboa Editora/Polygram, 1988.
Quem faz hoje anos? Lisboa: Círculo de Leitores/Caminho, 1988.
Crescendo e aprendendo. Lisboa: Instituto de apoio à criança, 1988.
A Galinha Poedeira. Porto: Desabrochar, 1989.
A Porquinha Asseada. Porto: Desabrochar, 1989.
O Coelho Comilão. Porto: Desabrochar, 1989.
O Cão Pastor. Porto: Desabrochar, 1989.
O Meu Livro de Natal. Porto: Desabrochar, 1991.
No Coração do Trevo (poesia). Lisboa: Verbo, 1992.
Uma Palmada na Testa. Lisboa: Verbo, 1993.
Pêra Perinha. Coimbra: Arnado, 1993.
A Gaveta das Histórias. Lisboa: Bertrand, 1995.
Sigam a Borboleta! Lisboa: Bertrand, 1996.
Ao lado dos bichos da seda. Macedo de Cavaleiros: Câmara Municipal, 1999.
A visita à Madrinha, Contos da Cidade das Pontes. Porto: Ambar, 2001.
A uma árvore amiga, Histórias da árvore dos sonhos. Vila Nova de Gaia: Ilha Mágica, 2002.
Hoje também há palhaços (com António Torrado) Porto: Asa, 2002.
100 Histórias de todos os tempos. Porto: Asa, 2002.
A água da minha infância, água 4 contos. Fundação Luso, 2003.
Passinhos da Mariana. Porto: Asa, 2004.
Camões, o Super Herói da Língua Portuguesa. Porto: Asa, 2010.
Poesia (não infantil)
Intervalo (1952).
Cântico de Barro. Lisboa: Portugália Editora, 1954.
A Palavra Imperceptível. Lisboa: s.n., 1955.
Oração de Páscoa. 1958.
Água Memória. Fundão: Jornal do Fundão, 1960.
Poesias Escolhidas. Covilhã: Edições Pedras Brancas, 1962.
A Pegada do Yeti. Lisboa: Moraes, 1962.
Os Mosquitos de Suburna. Edições Pedras Brancas, 1967.
O Robot Sensível. Lisboa: Plátano Editora, 1978.
O Jogo dos Silêncios. Lisboa: Hugin Editores, 1996.
Ensaio:
O Que É Imaginação. Lisboa: Difusão Cultural, 1993.
Imaginação. Porto: Asa, 2003.
Antologias e obras colectivas organizadas pela autora:
Antologia da novíssima poesia portuguesa (em colaboração com E. M. de Melo e Castro). Lisboa, Morais 1959, Moraes 1969 e 1979.
Histórias nunca lidas. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1991.
Outras vozes também nossas. Lisboa: Fund. Calouste Gulbenkian, 1993.
Colecção 1001 Detectives, escrita a três, com Natércia Rocha e Carlos Correia:
O Mistério do Falcão Azul. Lisboa: Caminho, 1987.
O Mistério do Carburador Salgado. Lisboa: Caminho, 1987.
O Mistério do Poço da Morte. Lisboa: Caminho, 1988.
O Mistério das Bonecas Holandesas. Lisboa: Caminho, 1988.
O Mistério do Nevão Assombrado. Lisboa: Caminho, 1989.
O Mistério da Marioneta Assassina. Lisboa: Caminho, 1989.
O Mistério da Carruagem. Lisboa: Caminho, 1989.
O Mistério das Portas Mal Fechadas. Lisboa: Caminho, 1990.
O Mistério do Bota d'Ouro. Lisboa: Caminho, 1990.
O Mistério do Motorista Chinês. Lisboa: Caminho, 1990.
O Mistério do Crime Mais-Que-Perfeito. Lisboa: Caminho, 1991.
O Mistério do Passageiro das Peúgas Amarelas. Lisboa: Caminho, 1991.
O Mistério das Galinhas Espavoridas. Lisboa: Caminho, 1991.
O Mistério das Motas Sepultadas. Lisboa: Caminho, 1992.
O Mistério da Ruiva Ifigénia. Lisboa: Caminho, 1992.
O Mistério dos Cheques Carecas. Lisboa: Caminho, 1993.
Escritora Maria Alberta Menéres esteve entre nós, Pena Jovem Março 2000
“Eu tive um aluno que dizia que tinha um lápis mágico, que o lápis dele escrevia coisas que nem ele sabia que sabia. Eu acho um espanto e, realmente, isto é o princípio da escrita.” - referiu a escritora Maria Alberta Menéres em entrevista ao PENA JOVEM
Dentro das actividades da disciplina de Língua Portuguesa, os alunos do 5º, 6º e 7º anos tiveram o privilégio de ver e dialogar com a escritora Maria Alberta Menéres, no meio de uns amigos nossos que dão pelo nome de livros (Biblioteca), no dia 23 de Março.
A escritora revelou-se sempre muito simpática e disponível para satisfazer a curiosidade dos alunos.
No final da jornada, ainda teve estofo para falar, falar ao nosso jornal.
P.J. - Desde sempre quis ser escritora?
Escritora - Desde sempre, praticamente desde os nove anos que foi quando comecei a ir à escola. Aos 9 anos, apaixonei-me por um dicionário, achei que era um máximo e que, se soubesse aquelas palavras todas e o que queriam dizer, podia ser escritora.
Claro que era uma ideia de miúda, não é? Claro que não é bem assim e que não é preciso saber tantas palavras como estão no dicionário.
Mas para mim foi um encantamento saber que eu podia escrever o que eu quisesse e que as palavras da Língua Portuguesa eram muito bonitas.
P.J. - Como caracteriza o seu modo de escrever?
Escritora - O meu modo de escrever é assim: eu procuro sempre pôr a maior qualidade possível no que escrevo, procuro jogar das maneiras mais banais, mais vulgares de dizer as coisas e então invento-as. Por isso, por exemplo, se eu falo do ouriço-cacheiro, penso como é que o ouriço-cacheiro falará. Isto em relação à minha escrita para crianças, mas eu não escrevo só para crianças.
Quando escrevo para mim, normalmente poesia ou ensaio (romances nunca escrevi, mas também tenho essa ideia, mas, enfim, claro está que é outra maneira de escrever), procuro escrever sempre com sentimento, mas principalmente com inteligência. Primeiro a inteligência e depois o sentimento, porque senão saem coisas muito banais e muito pirosas. Mas, se a gente escrever com inteligência e sentimento, as coisas podem revelar uma outra maneira de ver o mundo, que é isso que eu quero sempre: ver o outro lado das coisas que não vemos todos os dias.
P.J. - Porque se dedicou à escrita de livros para crianças?
Escritora - Porque descobri que era difícil, engraçado e que ao fim ao cabo eu acabava por entender a minha própria infância. Não pensando na minha, mas pensando na infância dos outros e comparando um pouco com a minha, sem comparar; isto é um bocado esquisito, porque há coisas que são comuns a todas as infâncias. Por exemplo, a descoberta dos animais do campo, dos animais selvagens, a conversa que a gente faz com o dia, com a noite, com as coisas que vai descobrindo e vendo todos os dias, mesmo as mais estranhas e as mais pequeninas.
O que é falar com uma coruja de noite, uma coruja que não nos vê? A gente pode falar com elas; por exemplo, a última vez que eu falei com uma coruja, no fim acabei assim: olha, agora já são horas de ir dormir, viras o rabinho para cá, abres as asas e vais embora. E a coruja virou o rabinho para mim, abriu as asas e foi-se embora. Há uma conversa que a gente não entende, mas a gente atira e às vezes pega.
P.J. - Para além de escritora infantil, é também poetisa. Quando escreve poesia, normalmente em que se inspira?
Escritora - Na poesia, inspiro-me em mim própria. Quando eu escrevo, eu não sei o que vou escrever, mas a minha mão escreve e de repente eu digo: ah! Isto estava certo, era isto mesmo que eu queria dizer, mas não conseguia dizer! Isto só se pode saber quando se começa a escrever.
Eu tinha um aluno que dizia que tinha um lápis mágico, que o lápis dele escrevia coisas que nem ele sabia que sabia. Eu acho um espanto e, realmente, isto é o princípio da escrita. A gente começa e, de repente, nem sabia que sabia.
Agora, quem não começa não tem esta maravilha de saber o que é.
P.J. - Tem trabalhado com Natércia Rocha e Carlos Correia na colecção juvenil “Mistério”. Prefere escrever sozinha ou colectivamente?
Escritora - Eu gosto muito mais de escrever sozinha. Mas, foi um desafio muito engraçado que me lançaram e que eu até nem acompanhei muito, porque eles têm muito mais jeito. O Carlos tem mais jeito para romancear, para fazer romances; a Natércia tem mais jeito para ver onde está a pista certa e a pista falsa e eu tenho mais jeito assim para as loucuras, as loucuras da escrita, de vez em quando lá vai uma… Mas eu não tenho grande jeito para escrever com outras pessoas.
A pessoa com quem eu gosto mais de escrever e que tem mais a ver comigo é o António Torrado, porque temos vários livros em conjunto e é sempre o "mata, esfola".
Um diz “mata” e o outro diz “esfola” e é muito engraçado e tão divertido que vocês não fazem ideia.
Esta dos livros "Mistério" é mais complicado, dá mais trabalho, mas eu gosto de fazer, porque gosto deles como amigos, de resto não seria nunca sozinha que eu escreveria, nunca me atreveria a fazer "Mistério".
P.J. - De todos os seus livros, qual foi o que a marcou mais?
Escritora - Tenho vários. A minha escrita para adultos marca-me sempre muito, mas isso é outra história.
Em relação aos mais novos, "O POETA FAZ-SE AOS DEZ ANOS" foi um livro que eu escrevi com os meus alunos, foi uma coisa muito engraçada na minha experiência como professora. Gosto muito de "HISTÓRIAS DO TEMPO VAI, TEMPO VEM", que está esgotado, mas vai agora sair na ASA; gosto de "O CORAÇÃO DO TREVO”, gosto muito de um que é "UMA PALMADA NA TESTA”.
P.J. - Para além de escritora, é professora, tradutora e colabora em jornais e revistas literárias. Como consegue conciliar todas estas actividades?
Escritora - É a pouco e pouco. É cada coisa no seu dia. Em primeiro, fui professora, agora já não sou. Agora sou mais escritora. Tradutora já foi o tempo, agora já não tenho paciência para fazer traduções; só se me aparecer assim uma muito interessante, ainda farei, mas já não me apetece.
Apetece-me mais aproveitar o tempo em coisas que eu sinta mais. Neste momento tenho oito livros, mais ou menos pensados e agora tenho que me dedicar a eles. E eu nem sei por qual deles vou começar, aquele que me apetecer mais no momento. Mas, prefiro fazer livros meus.
P.J. - Para si, qual é o seu escritor preferido?
Escritora - Tenho muitos. Vou dizer um de antigamente: o Camões, adoro o Luís de Camões, mas o Camões não é “Os Lusíadas”, eu gosto é dos sonetos, da lírica de Camões.
Depois, um bocadinho mais para cá, gosto do Aquilino Ribeiro, acho-o o máximo, principalmente os livros dele para crianças e não só, os outros também. E agora, ultimamente, ando muito apaixonada pela escrita de Mia Couto. Ainda é novo, penso que ainda não tem 40 anos, e é fantástico; a escrita dele é do mais mágico e do mais interessante que há; é um escritor muito jovem e é moçambicano, escreve um Português impecável, é uma coisa maravilhosa. Vocês leiam, que vão ficar fascinados. E, mete-me raiva, porque ele escreve coisas que gostava de ter sido eu a escrever. Isto é logo um sinal: Ena! Como é que ele se lembrou de escrever isto e eu não?
P.J. - O que é que achou da nossa escola e dos nossos alunos?
Escritora - Adorei vir cá, gostei imenso. Com o 7' ano que estive foi óptimo, estavam extremamente atentos e interessados e muito curiosos em saber as coisas, muito sensíveis. Adorei. Dos primeiros também gostei muito, mas os segundos, os do 6' ano, como eram muitos, não conseguimos ter uma comunicação melhor, porque eles estavam muito distraídos, muito reguilas e estavam sempre a conversar uns com os outros; eram de mais, sabes como é? Estavam a querer fazer despique uns com os outros e eu sei como é isso, porque eu também era igual, de maneira que eu percebo as coisas. E assim sendo, não resultou tão bem.
Agora, com os primeiros, gostei imenso e até me deram imensas ideias.
P.J. - Qual a mensagem que quer deixar aos nossos alunos?
Escritora - Que leiam o mais possível e leiam coisas diferentes. Vejam o que cada um gosta mais de ler e leiam isso, escolham livros próprios para a vossa idade; depois, atrevam-se também a escrever, porque, quando a gente escreve, é como dizia aquele meu aluno: "O meu lápis é mágico, ele escreve coisas que eu nem sabia que sabia." E, se começarem a escrever, vocês perceberão porque é que ele diz isto. Ele tinha toda a razão, isto é o princípio da escrita. Quem começa a escrever é que descobre o que vai descobrindo, que às vezes nem sabe o que tem para dizer. Só começando a escrever, é que se consegue.
De maneira que gostem muito de ler, de escrever e que sejam muito felizes.
Prometi, é verdade. Prometi escrever aqui para o Jonal de Letras a minha Autobiografia. Foi um convite que muito me sensibilizou e mesmo entusiasmou. Mas logo a seguir me afligiu. E depois me apavorou. Telefonei então - tarde e a más horas, reconheço, só para dizer que não ia corresponder a tal convite, porque de repente reparei que havia peripécias da minha vida, tão incríveis que ninguém ia acreditar que fossem reais! Não consegui provar que esta fosse uma grande razão para desistir, e por isso aqui estou, incautamente contando algumas verdades da minha vida.
- Nasci no dia 25 de Agosto de' 1930, em Vila Nova de Gaia. Naquele tempo, era muito habitual nascer em casa, com assistência de um médico de família. Lembro-me perfeitamente de nascer. Lembro-me de ter sido o meu pai quem me recebeu nós seus braços e me levou para um sofá amarelo que estava ali no quarto deles. Primeiro, fiquei sossegada, mas de repente comecei a espernear e ouvi claramente a minha mãe dar um grande grito: «Ai, a menina!». O meu pai correu e conseguiu apanhar-me já no ar, entre o sofá e o chão. - Durante largos anos, aquela sensação de cair, desse dia, fez com que, volta não volta, eu passasse a acordar de noite e sempre à mesma hora do meu nascimento, arrepiada pelo meu próprio grito. Um dia, esse grito acabou, sem qualquer razão. Mas não acabou na minha memória, todo o tempo que vivo (a cores, e com o entendimento de uma especial situação). Sempre pensei que este fosse um caso único no mundo, mas um dia li numa revista médica cujo nome não guardei, que há mais casos destes no mundo, embora sejam muitíssimo raros. Entretanto, nasceram as minhas duas irmãs mais novas, mais «normais» ...
- Quando eu tinha seis anos, morreu o meu avô Materno, Artur Rovisco, que era médico e veterinário, e que andava a cavalo, pelos campos, a curar pessoas e animais. Primo (como irmão) de Rovisco Pais, era um avô encantador, casado com a minha avó Adelina. Por morte desse meu avô, que deixou duas herdades ribatejanas à minha mãe, saímos definitivamente de Vila Nova de Gaia e fomos viver lá para o campo, onde fiz a primeira e ingénua aprendizagem do que é viver longe de qualquer civilização, à distância de dez quilómetros da 'aldeia que ficava mais perto! Foi um tempo maravilhoso e inesquecível, em que aprendi a trepar às árvores num instantinho, a visitar as tocas das raposas e a ser amiga dos seus filhotes; a ajudar as galinhas a fugir dos milhafres, e os patos a não serem tão patarecos ... ; e a andar a cavalo sem sela, só agarrada às suas crinas; e a perder-me de propósito ... o que passou a ser a grande aflição dos meus pais e de todos os trabalhadores de lá… Mas eu adorava perder-me por aquelas solidões todas, até que um dia, sob uma violenta trovoada, e já sem perceber o caminho para casa, encontrei um velho camponês que me disse: - «A menina deixe o cavalo ir para onde ele quiser, que ele é que sabe o caminho para a cocheira dele! Largue-lhe as rédeas!» E assim foi. Quando cheguei a casa, estava tudo em pânico por não me encontrarem em lado nenhum, e por saberem que os cavalos não gostam lá muito de trovoadas! Aprendi a ir buscar água à Fonte dos Marmeleiros, em cântaros enfiados nas cangalhas que iam em cima dos burros; a fugir dos enxames de abelhas; a não ter medo dos relâmpagos e dos trovões - enfim, a saber fazer parte da natureza em toda a sua força e esplendor. E lia, lia muito. Lia tudo o que apanhava à mão. E comecei a escrever - à minha moda.
Esta primeira aprendizagem de um tempo de liberdade e de descoberta, foi o grande primeiro impulso da minha vontade de ser escritora. Entretanto, o meu avô paterno enviava-me, de Vila Nova de Gaia, livros fantásticos como por exemplo, todos os Clássicos da Sá da Costa, entre os quais a Ilíada e a Odisseia! E também me enviava livros do Brasil, onde tinham casado a sua mãe e o seu pai e meu bisavô Clemente Menéres, antes de este ter comprado as terras transmontanas do Romeu. Desses livros todos, destaco alguns de Monteiro Lobato e a célebre colecção de uma revista mensal para jovens, chamada O Tico Tico, de que ainda hoje conservo todos os números, religiosamente! Mas ali, no meio do campo ribatejano, não havia ninguém que nos desse uma normal instrução, e então os meus pais levaram-nos, primeiro a mim e, nos anos seguintes, as minhas irmãs, para um Colégio interno, em Lisboa - primeiro, um de Franciscanas Missionárias, e depois para outro que era das Irmãs Doroteias no qual, como ninguém me vencia nos saltos em altura, inventei que voava e, para não me esquecer, «programei» o espectáculo dos meus voos para as quintas-feiras, às cinco horas da tarde! Foi um horror, porque todas as quintas-feiras, às cinco horas da tarde, eu tinha de me esconder, para, logo que passassem uns minutos, aparecer e fingir que estava muito desolada por já ter passado o tempo dos meus voos! E isto durou uns dois anos ...
Só que um dia de festa grande lá no Colégio, aconteceu que era uma quinta-feira e era quase cinco horas, estando o Colégio todo reunido num grande Salão. Não me consegui escapar!!! Toda a gente gritava para eu voar, e então, muito afoita, trepei para o alto de um enorme quadro de mogno que ali estava e, em frente de todo o Colégio, lancei-me no espaço, a voar! A minha ideia era que, com o impulso que dei, firmando o pé na parede que tinha atrás de mim, e fazendo-me muito levezinha, conseguisse chegar ao fundo do Salão ... mas o pior é que, mal me lancei no ar, fez-se ouvir a estridente campainha das cinco horas do Colégio, e eu só tive tempo de gritar «diabo de campainha!!!» e, levemente aterrei no chão de mármore encerado. Senti logo que tinha partido um pé, mas não dei parte de fraca ... Houve um grito geral: «Ela já estava a voar! Ela estava a voar!!! Se não fosse a campainha, tinha dado a volta à sala! !!» Eu sorria, e não disse nada que tinha magoado um pé, que afinal estava mesmo partido. Estive quase um mês na enfermaria do Colégio, onde recebi muitas visitas sempre e me fartei de dar autógrafos ... E difícil de acreditar, mas ainda hoje, lá de vez em quando, encontro pessoas que não conheço e ouviram falar das minhas aventuras, e me perguntam: «Você é a Alberta que voa?!» É claro que digo logo que sim, e tudo acaba numa grande e cúmplice risota!!!
Foi desta e de muitas outras aventuras assim loucas que se fez a minha infância. E motivos para escrever para os mais novos, principalmente, nunca mais acabam. Até porque eu acredito, ao fim e ao cabo, que «todas as coisas têm uma história para contar». Agora, assim de repente, é que reparo que me esqueci de dizer como foi que comecei a entender mais claramente que gostava de ser escritora! Tinha começado o tempo das férias de Verão e eu estava quase a fazer 10 anos. Nunca ninguém deve ter entrado na praia de Vila do Conde, como eu entrei: de Dicionário debaixo do braço, toda contente! Era uma paixão bem recente: Que maravilha existir um livro que explicasse o que queriam dizer todas as palavras do mundo!» (pensava eu). Assim, já poderia ser escritora! E logo que eu e a família nos instalámos na barraca de praia onde íamos passar a manhã, eu sentei-me lá na frente, junto ao mar, e «sentei» também o Dicionário ao meu lado, em cima da toalha de praia. Pedi à minha mãe que me desse um caderninho que ela trazia muitas vezes com ela, e um lápis. Pronto! Já podia ser escritora. E, a escolher e a escrever uma palavra aqui e outra além, com os sentidos que de repente me apareciam mesmo mágicos, escrevi a primeira quadra da minha vida, que era assim: “Num sibilar longínquo o mar rugia a chorar: é que um segredo iníquo o fazia meditar!" E fiquei fascinada: que bonita! Não sabia nada o que queriam dizer, estas palavras, mas era muito bonito o que tinha escrito! ... (pensava eu) Agora, reparando bem: um sibilar é sempre baixinho, secreto, nunca pode ser longínquo ... E o mar, como seria rugir a chorar, se até estava tão mansinho naquele dia?! E o que seria um segredo iníquo, que eu nem sabia bem o que queria dizer, mas certamente não era coisa que permitisse muitas meditações ... Eu queria lá saber destas impossibilidades! Só pensava que era tão bom poder escrever assim coisas tão misteriosas e tão belas! (E não me calava, com esta descoberta.) Nunca mais parei de escrever. Já sem a necessidade de consultar o Dicionário - mas sempre admirada pela nossa capacidade humana de admirar e de sentir. De momento, continuo a andar de Escola em Escola, e de Câmara Municipal em Câmara Municipal, conversando com os professores e os alunos e levando a todos a minha ideia de que é bom viver num mundo que está cheio de histórias contadas e por contar, e que as podemos descobrir ao longo de toda a nossa vida - sempre diferentes, conforme os olhos que as vêem e o coração que as sente. Não há receitas para estas descobertas, mas apenas estratégias sensíveis que, se nós as quisermos descobrir, veremos como poderão dar mais sentido e beleza à nossa vida de todos os dias.
Maria Alberta Menéres, Jornal de Letras 2006